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Humberto Catta Preta
só filme gringo nesses favoritos
você é uma vergonha -
Humberto Catta Preta
Parabéns pelas notas para all about eve e bacurau
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Victor Hugo Sodré
mentira, caguei no pau, vou atualizar sorry to bother you
Existiam duas Nara Normande para mim: a diretora de animações que tratavam sobre uma vivência bucólica de amizades intensas à beira-mar como em obras como Guaxuma (2018), assim como em produções para oficinas como Garota Bagre (2015) e Corais da costa (2016); e a diretora de narrativas trágicas de uma dureza áspera como em suas primeiras criações: Dia Estrelado (2011) e Sem Coração (2014), o curta-metragem. Fiquei positivamente admirado ao perceber que essa minha imagem mental dupla se revelou como sendo una nesse longa-metragem, dirigido em parceria com Tião, assim como o curta de origem.
Sem Coração (2023) vem como um acalanto para um sentimento em mim decorrente do longo período de isolamento ainda recente em nossas memórias, somado a uma política cultura quase nula, e que resultou em uma escassez de imagens de afetos físicos em tela. A importância do encontro de corpos se prova na obra tanto no momento em que Tamara, a protagonista, pede para a mãe um carinho nas costas, quanto em outro, mais a frente, em que os toques entre dois personagens são apontados como os causadores de um conflito em uma festa. O contato se mostra presente em suas mais diversas facetas, positivas e negativas, desde surras de cinto e um soco na cara até a masturbação.
As bem demarcadas sequências com músicas me lembraram do conceito de "momentos musicais" da Amy Herzog (2010). Para a autora, certas trilhas sonoras se recusam a permanecer “domesticadas” pela imagem e alçam uma presença dramática nas produções. Em uma sequência de Sem Coração, acompanhamos um diálogo entre mãe e filha sobre mudanças, físicas e emocionais, ao som de Iansã de Maria Bethânia (rainha dos raios; tempo bom, tempo ruim!). Em outro momento, a conversa sobre uma viagem e sobre paixão é embalada ao som de Please Don't Go. Em ambas as ocasiões, eu senti.
A maneira com que localizam a história temporalmente no verão de 1996 possibilita também o desenvolvimento de elementos bastante interessantes. O primeiro é a maneira com que o espaço onde a história se desenrola, região litorânea de Alagoas, é congelado no tempo. No princípio, acompanhar os personagens adolescentes assistindo a uma obra do Ivan Cardoso em uma televisão antiga (estou sendo generoso) ou escolhendo obras pornográficas dentre um amontoado de VHS pode causar certo estranhamento. Contudo, mais do que pontuar o roteiro como resultado de reminiscência dos seus realizadores, a década de 1990 agrega um outro ritmo à narrativa, uma outra forma de apreensão do que nos é apresentado. Por conta disso, por exemplo, o agrupamento de moradores na praça para acompanhar a televisão noticiando o assassinato de PC Farias ou a maneira mais liberal (alguns podem entender até como relapsa) que os responsáveis cuidam dos seus filhos, é justificada de certa maneira. Esse arrebatamento temporal também é responsável por construir momentos encantadores como quando duas personagens, dividindo uma bicicleta na chuva, protegem-se com uma grande folha de bananeira — sequência próxima ao arrebatamento causado por alguns trechos animados pelo Studio Ghibli. Outro elemento interessante é a maneira com que ecos da Ditadura Militar podem ser identificados: o caso de um anel com os dizeres “Doei ouro para o bem do brasil - 1964” — servindo como chave de análise para um misterioso crime ao fim da trama, ou uma ponte com o cenário político contemporâneo.
O que mais me agradou em Sem Coração foi perceber que é uma narrativa de amadurecimento onde os seus personagens não relutam em amadurecer como é costumeiro. Existe determinado grau de apreensão, é verdade: a protagonista se aflige por ter que se mudar para Brasília e deixar os seus amigos e cidade natal para trás, dois garotos temem pelo que pode acontecer com eles ao andar como casal na rua etc. Contudo, o medo nunca os impede de viverem e se descobrirem. Eu classificaria Sem Coração não como uma narrativa de amadurecimento, mas, sim, uma narrativa de descobrimento.